Para ouvir lendo: “I don't feel like dancing”, do Scissor Sisters. Talvez um pouco animado demais pra essa hora da manhã, mas quem se importa? Sextou. (Youtube/Spotify)
Lara queria demais voltar para casa. Só não expressava em palavras. O corpo largado no canto do sofá sem se mexer há quanto tempo?, umas cinco horas, vinte minutos? A cabeça trabalhava repetindo a ideia de que era hora de se mexer, andar até a sacada onde as pessoas estavam concentradas pegando os primeiros raios de sol da manhã, ir ao banheiro, beber uma água, falar com alguém. Mas alguma coisa no sofá a sugava para baixo e para dentro das almofadas e Lara ficava ali, as pupilas enormes escondidas atrás dos óculos escuros, julgando em silêncio. Não havia nenhum problema em ir embora, claro. Nesse momento, Lara tinha tanto carisma quanto uma planta murcha, ninguém ia reparar. Na verdade, sequer tinha ligação especial com aquelas pessoas ali naquela festa naquele apartamento naquela manhã. Fazendo um esforço, talvez não tivesse nada a ver com a avenida São Luiz, com o Centro, com São Paulo. Enfim.
Lara soltou a fumaça do cigarro com o canto da boca, tentou achar bonito as pessoas eufóricas por estarem juntas ouvindo música sob efeito de tóxicos e pensou, não sem dor, que num mundo paralelo talvez estivesse agora vivendo uma manhã de domingo de verdade, vendo o sol em lugar bonito, acordando com marido e filhos, tomando café com torradas de pão integral e ovos orgânicos, recebendo os pais para um almoço, mais tarde encerrando o dia vendo Fantástico, dando uma trepada morna antes de dormir de conchinha e começando a semana sem ressaca. Não deve ser assim tão ruim. Mas alguma coisa tinha dado errado em algum lugar, tão errado que a ideia de normalidade a essa altura da vida era fantasia. Aquela vida, uma vida ordinária, não era para ela. Ela que é magricela e tatuada, ela que pinta o cabelo castanho escuro de preto, ela que tem franja e um emprego cool como assistente de um empresário importante da noite da cidade, ela que recebe roupas de marcas legais para divulgar, que tem passagem livre em qualquer porta de festa nessa caralha de cidade e que muitas vezes não precisa pagar a própria cerveja, o próprio brunch ou o próprio táxi. Ela que aproveitava o que a cidade supostamente tinha de melhor, mas nunca suficiente. Talvez seja isso: se voce não está sempre se divertindo, o que que nesse cenário significa estar sempre (sempre!) brilhando e rindo e falando frases espertas e tendo as melhores dicas e beijando bocas e aceitando convites para as festinhas certas, você não é alguém. E em São Paulo ser alguém é tudo. Não há espaço para hesitação na epidemia do protagonismo.
Também não há espaço para erros. “Uma festa errada pode acabar com a sua reputação, baby”, ela lembrava do primeiro-último date com um dono de bar, espécime cobiçado, um sujeito, alto, magro, sempre de preto e usando óculos escuros em lugares fechados, que quis saber quais bares da cidade ela tinha frequentado. Lara podia dizer “todos” e seria honesta, mas não era a quantidade que ele queria julgar. Tanto que mais tarde, depois de transar com o pau meio murcho e sem conseguir gozar, ele se deu ao trabalho de checar no Facebook os amigos em comum. Não por ciúmes, mas para confirmar que Lara andava com as pessoas certas.
Lara alcançou o maço de Marlboro branco, que sempre foi Marlboro Light mas agora as pessoas estavam chamando de “silver” e ela também, afinal, vai que tem algum PR da Phillip Morris no rolê? Todo mundo está sempre disputando atenção das gentes de marcas. Disputando mimos. Quanto mais exclusivos, melhores. De preferência alguma coisa com o nome próprio marcado, com o rosto exposto. Um jogo de memória em que as pecinhas quadradas são seus posts mais vistos no Instagram, um paper doll customizado com as suas tatuagens, fan art em quadricromia, uma camiseta de time de basquete só que com seu apelido escrito, uma cesta de café da manhã enviada por um app de dating que você não usa, e que você não tem com quem repartir, mas que vai pro feeds como se tivesse – ninguém precisa saber que dos dois pratos em cima da mesa, um não foi usado.
Lara escorregou por cima do sofá e sentou perto do cinzeiro de vidro azul, no chão, alterando a posição sutilmente para parecer esguia para quem estivesse vendo. Com o cigarro na boca, arrumou o cabelo num coque, esticou um dos braços para o lado numa displicência fingida e sorriu de longe para ninguém em especifico. Na varanda lá fora um grupinho de algo entre três e cinco pessoas ria alto, alguém olhava o celular de forma maníaca e uma meia dúzia dançava o som vindo da JBL. O tal moço do date estava atracado com uma garota recém chegada na turma, alguém que ainda não tinha babagem o suficiente parares julgada, pegando a bunda dela com as duas mãos enquanto um engolia a cara do outro no sol das oito da manhã.
Lara tragou o cigarro com vontade e soltou a fumaça num suspiro longo, encostando o corpo no sofá. Ir embora seria o mesmo que levantar e dar tchau? Ou era possível escorregar o corpo pelo chão, fechar a porta em silêncio, descer os dois andares de escada, sair no dia frio, atravessar as duas faixas da São Luiz na direção do outro prédio, dar bom dia para o porteiro do turno da manhã, ouvir o barulho do portão bater, esperar o elevador no hall espelhado enquanto sente o vento gelado entrando pelas grades, olhar o próprio rosto com olhos borrados e poros abertos no espelho no elevador, prender o xixi nos longos minutos até o sétimo andar, localizar o lado de cima da chave tetrapak pela bolinha acima do dente metálico, girar duas vezes para o lado esquerdo, deixar os sapatos ao lado da porta, esfriar os pés no chão da cozinha, encher um copo de água do filtro de barro e, enfim, deitar de roupa na cama sempre desarrumada, fazer casulo com o cobertor e sentir a cabeça funcionando demais.
Acordou sentindo o indicador direito queimando e largou o cigarro num tapa, derrubando o cinzeiro de vidro azul em cima do tapete caro. A música tinha mudado e a cena na varanda também: agora todo mundo dançava. Lara juntou as bitucas, apagou o cigarro e escondeu a mão queimada dentro do bolso da calça enquanto deitava de volta no sofá, as costas voltadas para a varanda. Se era pra fritar, que fosse ali, entre outros fritos. Ninguém quer chegar em casa sozinho.
Essa semana no Paulicéia
Que maravilha foi falar com o Emanoel Araújo, o artista plástico e intelectual baiano à frente do espetacular Museu Afro Brasil – pra mim, o melhor e mais importante de São Paulo. O Emanoel, que está com 81 anos, me recebeu com muita gentileza e paciência em uma tarde de sol em sua sala dentro do Pavilhão Manoel da Nóbrega,. Começou falando da amizade com Caetano Veloso, passou por Mário Covas, Marta Suplicy e José Serra, falou de MASP, da Pinacoteca (que dirigiu por dez anos), da Bahia, da Avenida Paulista e, claro, do museu que criou e dirige hoje. A maior parte do papo está na edição de segunda-feira, aberta para todos. Mas o ouro da entrevista está na edição de quarta, somente para apoiadores do Paulicéia. Estou trabalhando para que o Paulicéia seja meu trabalho principal a partir de 2022 e você pode apoiar essa idéia assinando a newsletter a partir de R$15/mês. Além da entrevista da semana, sempre em duas partes, você recebe também um guia bárbaro com coisas legais pra fazer em São Paulo, toda sexta-feira. Vem ni mim \o/
Chegou aqui ✍🏻
Rolou um sorriso quando vi que a Fósforo lançou uma nova versão de “Como Escrever Bem”, o clássico manual de escrita de William Zinsser. Lançado há mais de trinta anos nos EUA, o livro se tornou a mais importante obra de referência sobre escrita de não ficção e faz bem na cabeceira de todo mundo que gosta de pensar o ato de escrever. Assim como o tipo de escrita que propõe ensinar, o livro de Zinsser é atraente e claro, é fácil de ler e acrescenta algo a cada folheada. Eu já tive uma edicão, que infelizmente emprestei e não recebi de volta há uns anos e o buraco na minha estante agora foi preenchido. A nova tradução, por Bernardo Ajzenberg, é baseada na edição comemorativa de três décadas do livro, “revista à luz das inovações trazidas pela escrita na internet”, e traz um novo capítulo sobre a escrita de memórias (amo/sou). Ah, sim: a edição da Fósforo é um esculacho de linda. Tem por R$69,90 na Dois Pontos.
Fiquei pensando aqui: qual é o livro equivalente em português? Me conta nos comentários, é só clicar abaixo:
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A Salvo é uma curadoria de conteúdo bacaninha no Instagram. A dica veio da Débora Lopes, em quem eu confio de olhos fechados, e acabei perdendo boa meia hora no feed ótimo e lindo da dupla Caroline e Nastacha. Elas têm uma newsletter mensal com dicas de filmes, livros e coisas legais, e também um clube de filme, que na próxima edição vai conversar sobre o espetacular “In the Mood for Love”. Vai lá:
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Olá, Gaía! Conheci recentemente a Newsletter da Ana Holanda e ela tem um livro que sempre vejo como referência (confesso que já comprei mas não li ainda): COMO SE ENCONTRAR NA ESCRITA - https://www.rocco.com.br/livro/como-se-encontrar-na-escrita/ . Parabéns pela sua news, é um sopro de "luz" nessa escuridão que estamos vivendo : )