Para ouvir lendo: a versão do Charlie Haden com o Pat Metheny pro tema de “Cinema Paradiso” (perdão, Morricone) (Youtube/Spotify)
“Tá rolando uma retrospectiva do Kiarostami, a gente podia ir junto.” Foi um convite real. Bem intencionado, certeza, mas meio no alvo errado, visto que sou uma pessoa que vai ao cinema ver filme de super-herói comendo pipoca com refil. O moço era cinéfilo desses que publica foto de filme velho no Instagram e carregava sempre um roteiro escrito-mas-nunca-terminado dentro de uma pastinha, sobre o qual ele podia solar por horas. Não fui. Pensei em fazer graça dizendo “mas gente não pode deixar o ciclo do cinema iraniano pra uma hora em que esteja sem vontade de transar?” mas a interação não tinha evoluído pra esse estágio, então falei ”sim sim, adoro ele, parece ótimo, a gente se fala” e não respondi mais — isso foi pré-pandemia, quando ainda não usávamos questões sanitárias graves como desculpa para não sair.
Ir ao cinema com um novo pretendente pode ser chato. Dependendo do filme tenho medo de dormir durante a projeção e decepcionar o acompanhante. Também é capaz que eu não entenda o que está passando na tela e fique tensa, pensando em achar algo interessante pra dizer. Isso de ter que falar sobre o filme depois, ter que emitir uma opinião com teor inteligente, ser espirituosa. Ou, pior, ouvir algum comentário horrível e ser acometida de uma vontade enorme de voltar pra casa sozinha. Quem nunca?
Tive um namorado, desses intermediários entre uma relação mais importante e outra, lá pelos vinte e tantos anos, que tinha estudado cinema na ECA e me levou em uma exibição de “Um Cão Andaluz” numa edição da Mostra de Cinema de São Paulo. Você sabe, é aquele do bisturi no olho. Sofri durante os dezesseis minutos enquanto o olhava de canto o moço com a mãozinha no queixo, ouvindo os colegas de sessão ora rindo, ora aplaudindo, ora expressando interjeições de surpresa e aflição. E eu lá pensando que loucura isso de filmar a culpa católica com tanta veemência lá em 1929, mas será que é isso mesmo? O crush acabou pouco depois, quando ele mostrou seu filme de conclusão de curso.
E tem o cinéfilo truqueiro, tipo que aquele do meme “bem-vinda a Wes Anderson” e o outro que levou 11 namoradas pra ver “Bacurau”. Nessa categoria está um amor do passado que não quis assistir ao “O Céu Que Nos Protege”, aquela maravilha de filme do Bertolucci, dizendo que “não gosta desse tipo de filme”. Ué? Tipo filme bom? Um tempo após separar entendi que a gente consegue relevar quase qualquer coisa, mas abismo cultural marca mesmo.
Depois compensei com um namorado veneziano chiquérrimo, formado em ciências políticas, poliglota e cheio daquele charme de cultura antiga italiana. Ele lia latim e grego antigo e me ensinava sobre ruínas da Emilia Romagna em uma viagem de carro na neve ouvindo Black Death. Se orgulhava de nunca ter visto uma série de TV (sim, era meio chato) e eu estava enganando bem no papel da mulher culta, até que um dia a barreira cultural se impôs. Foi quando insisti em ver Game of Thrones na cama, justamente naquele episódio em que o Jon Snow luta com o exército dos zumbis de gelo. Pelo menos ficamos amigos.
Também teve um boy que pirava em Dario Argento, outro que gostava (muito) de documentários de natureza da BBC, um que se dizia fã do David Lynch mas nunca havia visto Twin Peaks e meu ex-marido, um cara adulto com bom gosto tanto pra cinema trash quanto pra documentário político e que certa vez me acompanhou numa exibição de “Roma, Cidade Aberta”, numa óbvia amostra de boa vontade. Também teve o Primeiro Grande Amor da Minha Vida, lá quando eu não tinha nem vinte anos, um menino lindo de olhos verdes e QI alto que depois de transar pela primeira vez (algo que a gente vinha enrolando pra fazer há meses) rolou pro lado, acendeu um cigarro e perguntou distraidamente, olhando pro teto no escuro… “e aí, você gosta de cinema espanhol?” Eu gosto e ficamos juntos seis anos.
Corta pra hoje. Vi muito filme e série em casa durante a pandemia, esqueci quase tudo. Lembro das coisas que revi: ”Tootsie” com o Dustin Hoffman, o maravilhoso “Ninotchka” com a Garbo rindo, um monte de clássicos considerados obrigatórios como “Cinema Paradiso” e “ Apocalipse Now”, esses com o meu filho. E eu não sou esnobe: gostei do “Gambito da Rainha” e estou adorando “Succession”.
Assim como quase todo mundo, interrompi as idas ao cinema. Só retomei coragem após entrevistar um dono de cinema pro Pauliceia — o Andre Sturm, do Belas Artes, que não por acaso é o cinema que mais frequentei na vida e também foi o primeiro cinema em que fui depois desse hiato. Fui ver “Marighella” numa sessão de pré-estréia que teve aplausos e gente gritando ”Fora Blsnr” (que é o certo).
Entendo a ida ao cinema como um dos melhores programas possíveis hoje: não tem conversa, tá todo mundo sentado olhando pra frente, e quando acaba você sai da sala e fim. Além do mais, tem a questão do ar condicionado central que troca o ar da sala o tempo todo. Enfim, é uma coisa que posso continuar fazendo sozinha e que justifica o aluguel abusivo que pago para morar no pedaço com maior concentração de cinemas no Brasil (a região da Paulista tem cerca de um terço das mil e tantas salas de cinema de São Paulo).
Depois disso já vi o novo do Wes Anderson (é lindo, veja!), vi “Dune”, quero ver “Deserto Particular", o filme da Gucci, o filme com a K-Stew como Lady Di, quero assistir uma comédia francesa genérica no Reserva Cultural e sair achando tudo lindo porque qualquer frase banal em francês parece interessante e sofisticada.
Outro dia tive um date com um amigo num cinema. Date é jeito de falar porque é um amigo mesmo, desses amigos antigos e pra vida. Fazia tempos que a gente não se via fora de situação de festinha e depois de dez minutos de filme, que era um documentário sobre jazz, meu amigo vira pra mim e fala “tá chato, Ga, vamos sair e tomar um vinho?” Respondi que sim, claro, e foi tão ótimo que nem lembro do filme perdido, só lembro do longo papo que tivemos no Balcão sobre nossos relacionamentos atuais e passados, sobre a noite de São Paulo, sobre como estão os amigos em comum que não vemos há tempos, sobre o Carnaval, sobre a vida, o universo e tudo o mais. É que às vezes o filme
é só a desculpa pra estar junto. Tipo Netflix & chill. Tipo a retrospectiva do Kiarostami.
Essa semana no Paulicéia
O boletim, que tem sido meu projeto principal desde junho deste ano e é enviado três vezes por semana para assinantes, saiu em reportagem do Reuters Institute sobre os desafios de fazer jornalismo independente no ‘global south'. Eu conversei com a Laura, autora da reportagem, há umas semanas e falei muito sobre minha relação com o Substack e as dificuldades de encontrar um modelo sustentável de conteúdo por assinatura no Brasil. Vem gastar o inglês um pouco.
Assinatura da Quatro Cinco Um
A revista dos livros está promovendo seus pacotes de assinatura, com modalidades de conteúdos exclusivos, clubes de leitura, newsletters e eventos, além de descontos em museus e editoras. A Quatro Cinco Um é uma das mais importantes publicações do Brasil hoje, com mais de duzentos livros indicados a cada edição, e se sustenta com assinaturas. Sou assinante em diferentes modalidades desde o lançamento. A versão digital funciona super bem, mas gosto mesmo é de receber a revista em casa todo mês.
“O Sensual Adulto”
Esse livro gerou gritaria em situação de mesa de bar na terça-feira semana, num debate (sadio) entre quem acha que é um clássico da nova literatura brasileira e quem acha que é forçação de barra. Eu acho que todo mundo deveria ler e tirar as próprias conclusões. O autor André Czarnobai (Cardoso, Dids), diz que é “um romance satírico” para “ler até o final, ou nem começar”. Eu li numa tarde, achei imparável. Não é uma leitura difícil mas em tempos de sensibilidades tão exacerbadas como estamos vivendo agora, as escolhas, digamos, estéticas do autor causam desconforto. Mas o argumento é ótimo: um grupo de publicitários (homens e insuportáveis) celebram a virada de ano em um barco em alto mar e, bom, a coisa degringola muito. Muito mesmo. Rende largas risadas para quem lembra que dá para não levar tudo de forma literal e que provocações ainda são bem-vindas. O livro foi lançado em esquema crowdfunding em meados do ano passado, pq o financiamento direto de amigos e leitores foi o único caminho viável para o lançamento, visto que nenhuma editora, grande ou pequena, quis comprar a ideia. O projeto grafico é um escândalo de lindo e não há mais edições fisicas, mas dá para comprar a versão virtual:
🤑 Tip jar
A “Tá todo mundo tentando” é e continuará sendo gratuita. Se você gosta do que escrevo aqui e quer incentivar 💰 eu agradeço demais. Você pode usar o Ko-Fi, ou minha chave Pix, que é gaia.passarelli@gmail.com. Só não esqueça de me avisar aqui no email, assim posso te agradecer diretamente :)
dos filmes que assisti na quarentine curti muito sorry to bother you
Sim! Escola Internacional para uma revolução internacionalista quase desde a primeira hora. Cinema mais antigo da ilha? Em Havana? Será o Cine Yara, em frente à Coppelia?