Tá Todo Mundo Tentando
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Tá todo mundo tentando: um dia, um gato, 2
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Tá todo mundo tentando: um dia, um gato, 2

Faz frio em São Paulo. E por aí?

Para ler ouvindo: Hamilton Leithauser - Heartstruck (Wild Hunger) ft. Angel Olsen (Youtube/Tidal

Se você não leu: aqui está a parte 1, publicada na semana passada.

Pt 2

“Você vai ter que aprender a ficar sozinho, cara”.

Não era um problema para muitos felinos, mas o Luca não gostava de ficar sozinho. Talvez o começo de vida sempre perto de Lara o tenha o deixado acostumado demais com a presença constante de outro ser, talvez o apartamento fosse excessivamente grande, talvez fosse o frio de São Paulo, talvez fosse o aspecto sinistro da falta de mobília depois que ficava escuro. De qualquer forma: ele não gostava quando ela saia de perto. E a única forma de mostrar esse desgosto para a humana era ignora-la quando voltava do trabalho, sempre tarde da noite. Nos primeiros dias, Luca até corria desesperado pra porta ao ouvir o tilintar das chaves subindo de elevador, e se esfregava nas pernas e mordiscava canelas para pedir com o corpinho: fica aqui, não vai mais embora.

Mas como o afeto não a fazia ficar, agora Luca tentava outro método. Ao ouvir as chaves, corria para se esconder em algum canto do apartamento. Acompanhava de longe Lara deixando suas coisas em cima do sofá da sala, indo ao banheiro, bebendo água na cozinha e fazendo psit-psit pela casa. Mas ele não arredava as patas de cima do armário do quarto, do interior de uma gaveta, debaixo da cama, de dentro do cesto de roupas sujas. Ela que o encontrasse.

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Às vezes, ela jogava sujo e colocava ração molhada no potinho, deixando o cheiro de comida de gato confundir sua consciência felina. Outra coisa que funcionava bem era música — isso Lara não demorou a descobrir. Já tinha criado gatos na vida e sabia que a personalidade alegre dos filhotes não dura muito tempo, que ele podem se tornar temperamentais e complicados. Dificilmente são bichos gregários. Uma das melhores coisas sobre gatos é que são bichos acostumados a ficar na deles, pensava. Que não dão trabalho.

Por isso, não tinha ficado preocupada ao aceitar um trabalho temporário durante a campanha eleitoral que começava agora, em agosto. Era um trabalho de dar vergonha, escrevendo chamadas para as redes sociais de um candidato a deputado federal em quem ela jamais votaria. Mas também era um trabalho do tipo que paga bem, por semana, e que não dava para deixar passar. Além do mais, Lara não tinha muitos amigos que poderiam julgar.

“É por pouco tempo, Luca. Prometo.” dizia ao notar o gato distante e chateado antes de sair pro trabalho, correndo pra tomar café da manhã na rua.

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Depois de entender que Luca não corria mais pra porta todas as noites, Lara passou a não se preocupar. Fazia suas coisas lentamente - banheiro, cozinha, alguma coisa doméstica chata tipo limpar a caixa de areia e colocar o lixo para fora do apartamento nas terças e sextas. Trocava o sapato por chinelos, varria um pouco da casa, pagava alguma conta usando o celular, mandava foto pro Instagram hashtag #011. E ligava a música na sala, perto do tapete e das almofadas no chão que ele gostava, ao lado da janela, acendia o abajur, e esperava a noite passar.

Gato é um bicho egocêntrico e Luca sempre achava que essa produção toda era para atrair sua presença. E cedia, vinha andando com seus passos elegantes de felino pelo corredor, até alcançar as ondas sonoras e o tapete. Aceitava carinho, e ficavam os dois, Luca e Lara, com petiscos felinos e distrações de humana. Raramente viam filme ou algo na TV. Lara preferia ouvir música.

Todas as noites, por mais que o mundo estivesse pegando fogo lá fora — debates, protestos, gente brigando na madrugada, sirenes da PM, tretas de crack, a noite em que o bar dentro da galeria na São Luiz fez uma festa que foi até as sete da manhã, a noite em que uma festa de rua tomou proporções épicas no Centro inteiro — Lara acompanhava pela janela, com Luca mordendo suas canelas para ganhar atenção. O gato não sentia falta de nada quando ela estava por perto e logo, com sua capacidade de adaptação felina, parou de sentir falta quando ela saia também.

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Um dia, Lara chegou em casa e cumpriu a rotina de sempre. Nada do gatinho. Teve petisco, ração molhada e psit-psit. Continuou no vácuo, mas não se preocupou de imediato — ele podia estar debaixo de cobertas, fugindo do frio ou só fazendo um carão mais firme. Verdade é que ela estava passando tempo demais fora de casa. Talvez fosse o clima fresco de agosto, talvez fosse o dinheiro ganho pra gastar, mas Lara tinha cada vez mais vontade de rua, de vida. De tudo aquilo que ela via pela janela.

E Luca começou a fazer o que os gatos fazem, que é dormir dezesseis horas por dia e se preocupar apenas com as próprias vontades. Ele não sentia falta de outros felinos, mas sentia mesmo a falta da humana de um jeito que não sabia explicar. Sentia falta do calor de suas pernas quando sentada escrevendo e ele podia ficar no colo. Sentia falta do barulho que fazia quanto colocava comida fresca no pote de ração. Sentia falta de mechas de cabelo para brincar.

Na falta disso, começou a prestar atenção em outras coisas. Como um barulho e um cheiro forte que vinha de vez em quando de dentro da parede, do buraco no canto do rodapé na área de serviço.

Tiago Lacerda @elcerdo

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Manifesto sobre nunca desistir, Bernardine Evaristo

"Garota, mulher, outras", eespetacular romance que tornou célebre Bernardine Evaristo em 2000, é a leitura que mais me impactou nos últimos, sei lá, dez anos. Sem exagero: sai dando edições de presente para as pessoas, dizendo "você precisa ler isso" — meio mala, mas muito franca. Por quê? Porque a escrita de Bernardine carrega tudo que uma autora dos nossos tempos batalha para alcançar. Aparentemente, sem esforço algum. Estão ali questões de identidade, gênero e raça, e está ali também a trajetória da autora, sempre costurada numa ficção envolvente, cheia de surpresas e personalidade.  "Propriedade" talvez seja a palavra certa. Propriedade é o que Bernardine entrega em seu Manifesto, um relato ora reflexivo, ora direto, sobre a importância de persistir na busca por si mesma, na busca por dominar a própria história, por encontrar e usar a própria voz. Compre na Dois Pontos.

Direito à vagabundagem, Paula Carvalho (organização)

Acabou de sair pela Fósforo: seleção de textos literários e jornalismo da Isabelle Eberhardt, viajante européia que na virada dos séculos 18/19 adotou a identidade de homem mulçulmano para viajar sozinha pelo Oriente Médio. A apresentação e organização dos textos é da historiadora Paula Carvalho, que estuda viajantes-exploradores e desvenda aqui uma personagem complexa e muito interessante, que viveu uma vida intensa e morreu em uma inundação no deserto antes de completar trinta anos. Leitura obrigatória para todas nós que nos interessamos pela mítica da mulher viajante.

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O livro no Brasil: sua história, de Laurence Hallewell
Retrata com precisão e riqueza de dados o panorama histórico da indústria editorial brasileira. Saiu pela Edusp.

Paratextos editoriais, de Gérard Genette
Um livro que estimula o exame minucioso dos que, apesar de por vezes passarem despercebidos, regulam nossa leitura. Publicação da Ateliê Editorial.

As guerras do livro, de John B. Thompson
O autor aborda a colisão da indústria de livros com a grande revolução tecnológica de nosso tempo. Edição da Unesp.

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💡  Curso A Vida do Livro

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Uma newsletter sobre o mal-estar da vida na São Paulo dos anos 2020 | por Gaía Passarelli -> http://gaiapassarelli.substack.com