Para ouvir tomando um café: “Buraco da Consolação”, um bolerão do Jards Macalé com o Tim Bernardes (Youtube)
“Não há mais muitos como nós”
Achei a frase num conto do Ray Bradbury.
Quis pensar nela e usar em algo sobre como somos especiais, belos, espirituosos, inteligentes, graciosos. Como somos incríveis quando estamos dançando entre os nossos. Como somos todos tão parecidos em nossos bons gostos, bons hábitos, boas histórias. Que por isso atraímos uns aos outros.
Mas na história do Bradbury, passada em Dublin como quase toda a obra do escritor, a frase tem um outro sentido, mais amplo. Vem de um pedinte que vive perto da ponte por onde o protagonista narrador sempre passa: “não há mais muitos como nós.”
A frase afunda num abismo. Há poucos de nós ou de vocês? Tem a petulância de dizer "nós" para um homem de classe social diferente, tem a sensatez de lembrar que somos todos humanos, tem a intenção de trazer calma e alguma normalidade, como quem diz "liga não, há cada vez menos men-di-digos aqui.” E há, claro, cada vez mais.
Na minha vida “nós”, eu e os meus, significa cada vez menos pessoas que conseguem se entender numa base diária. Há cada vez mais de nós, doentes acometidos dessa febre interna sem nome. Aqui em São Paulo há cada vez mais de nós vagando em busca de companhia e tratamento. Há cada vez mais desesperançados e há cada vez mais, muitos mais deles, os desabrigados de teto e de oportunidade.
É sim, pode ir lá fora ver, principalmente em dias frios como hoje: eles estão à vista, nós podemos ver.
"There's only a few of us left!” Você pode escolher se somos nós, eu e você ou nós, eu e eles. Mas aposto que você vai passar andando pela calçada como se não estivesse vendo. Eu também passei.
Essa semana no Paulicéia…
Essa semana o papo foi com o Rafael Vilela, reporter fotográfico paulista que colabora com Washington Post, Guardian e National Geographic (entre outros). Vilela foi uma das conversas mais legais do Paulicéia até agora, uma pessoa que se dedicou a registrar imagens do que considera “a pauta das nossas vidas": a vida durante a pandemia. No olhar dele entram o Breque dos Apps, os coveiros da Vila Formosa, as crianças Guarani do Jaraguá e as Presidentas de Paraisópolis, além das cidades de barracas que tomaram o Brasil. Dá pra ler aqui:
Termina nesse domingo a vigília de 40 dias na praça Pérola Byington, no Centro de São Paulo, batizada Primavera Solidária. A Primavera Solidária surgiu como uma ação em apoio à praça e ao hospital da mulher que fica ali, um centro de referência de saúde feminina. Mulheres chegam ao Pérola Byington de vários lugares da cidade para tratamentos de câncer, exames e afins. Mas o Pérola também é um dos poucos hospitais públicos onde mulheres podem fazer aborto legal nos casos em que a LEI PERMITE. Por lá são atendidas mulheres vítimas de violência sexual, por exemplo. Ficou célebre o caso de uma menina, grávida em decorrência de abuso sexual cometido por familiar, que quase teve seu DIREITO LEGAL à interrupção da gravidez porque fanáticos religiosos acharam por bem ir até a porta do hospital protestar “em favor da vida” (e contra a vida da menina e a favor de um estrupador). Foi para fazer frente à uma dessas ações “pela vida” que planejava ocupar as calçadas defronte ao hospital que a Primavera da Solidariedade nasceu, ocupando (de forma legal, com documentação aprovada junto aos orgãos responsáveis) toda a praça e promovendo ações pela vida das pessoas. No domingo agora se completam quarenta dias de coinha solidária, distribuição de café da manhã e almoço, rodas de leitura e partidas de xadrez, campeonato de dominó, oficinas de artesanatos diversos. E, principalmente, quarenta dias de envolvimento genuíno de gente que tem casa com gente que está na rua, com histórias de gente que saiu da rua porque conseguiu uma chance, um trabalho, um teto. Eu voltarei ao assunto da Primavera na próxima edição com os registros e dados atualizados de tudo que aconteceu nesse tempo. Mas já adianto que foi muita coisa. É lindo. E não acaba aqui.
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