Para ouvir lendo: “Balada da Arrasada", perfeita na voz da Angela Rô Rô (Youtube/Spotify)
As manhãs de domingo eram seu momento preferido.
Tinha algo de bonito na forma como a luz entrava pela janela do apartamento espaçoso e meio vazio.
Lara foi até a porta dele, vazio até ter novo ocupante, e olhou o colchão no chão, coberto só com um lençol para evitar a poeira, as portas dos armários fechadas, as marcas de fuligem onde tinham pendurado quadros. Parada no batente da porta com um copo d'água na mão, que se fosse um filme ia parecer que era uma mãe vendo o quarto do filho, uma irmã vendo o quarto do irmão, uma namorada vendo o antigo quarto do casal.
Eles não eram nada disso, eram muito mais, eram um pouco de tudo. Nos últimos anos, ele tinha sido seu irmão mais novo, namorado apaixonado, pai preocupado e roommate dos sonhos na figura de melhor amigo. Era seu único amigo antigo, dos tempos de escola. Era o único amigo que os pais conheciam, e só por causa dele é que não reclamaram tanto quando ela mudou para o apartamento na República. Teria sido o namorado ideal se beijasse garotas, e ela o amava de todo coração como o garoto maravilhoso que era. Os pais tinham aprendido a respeitar essa relação há tempos e também o tinham aceitado dentro da família como um tipo de filho que nunca tiveram. Não era difícil, já que ele era um rapaz bem criado, educado, inteligente, do tipo que levava pequenos mimos como chocolates quando ia visitar e trazia perfumes e lenços de seda para a mãe na volta de cada viagem. Depois de muitas idas e vindas entre Roma e São Paulo, tinha decidido tentar viver na capital italiana com o namorado que tinha conhecido durante um Carnaval no Rio de Janeiro uns anos antes. Casar com um italiano era mais fácil do que tirar o passaporte estrangeiro aqui no Brasil, e ele em um mês já tinha arrumado novo emprego, num hotel, onde falava principalmente inglês, enquanto aprendia italiano. Era um cara e tanto, e de tudo que Lara sentia falta, era das manhãs de domingo que sentia mais. Tomar café deitada com o amigo na rede e falar bem do mundo lá fora porque ao contrario da maioria das pessoas, ele não se divertia falando mal dos outros. “Dá câncer,” dizia. Então pra tudo que Lara reclamava, ele respondia com um lado bom. Maior Polyana ele, sempre com essa mania adorável de falar bem de tudo o tempo todo. Ao contrário da outra separação de Lara, nessa não existia rancor. Tinha sido sofrido, sim, mas Lara sabia que ele estava certo em ir, o namorado italiano era mais velho e gentil e belíssimo e ela achava que ele não ia voltar nunca mais e viveria como italiano o resto da vida, sabia que ele ia se cuidar e aprontar e prosperar e ter histórias e ir visitar de vez em quando. Ir pra lá agora não era uma boa ideia, por mais que seus pais achassem ótimo, era uma pressão em cima do amigo que ele não precisava e ela não queria entrar nessa barca de gaiata.
Lara fechou a porta do quarto para não pensar em quem ia morar lá agora. A outra roomate, estava fazendo pressão para ocuparem o quarto logo, mas a idéia de ter alguém vivendo ali onde ele vivia era meio uma traição. E se não fosse uma pessoa legal, pensou andando pra cozinha para preparar a primeira xícara de café da manhã. E se fosse alguém bagunceiro, sujo, irresponsável, bêbado. Ou, pior!, fumante. E se fosse o Vini, com quem a amiga estava obviamente envolvida, apesar de todos os pesares. Eles provavelmente iam repartir quarto, mas nada impedia que tivessem uma ideia tipo montar um laboratório de fotografia no quarto ou algo assim. A ideia era irritante e Lara rezou por dentro para que o pensamento não tivesse passado ainda pela cabeça dos dois. A amiga não estava em casa essa manhã, tinha dormindo na casa do boy o que, pra Lara, era só mais um sinal do quanto as coisas estavam ficando sérias. A amiga nunca dormia na casa dos peguetes. Sempre (sempre!) chamava um Uber ou táxi pra dormir em casa, por mais bebum que estivesse. Era uma das combinações não ditas entre elas. Mas já fazia três semanas que avisava por WhatsApp na madrugada, falando baixinho na mensagem de áudio “Lá, vou dormir na casa do boy, tá tudo bem, falamos amanhã”.
Com a cabeça nos outros, cada um vivendo sua própria vida em outras partes, Lara entrou na cozinha para fazer café e encarou a pior coisa que podia acontecer numa manhã melancólica. Outro combinados não dito da casa era que nunca podia faltar café. Lara roubava umas cápsulas de café da editora pra fazer na máquina de espresso que tinha ganho dos pais no Natal. E a amiga colaborava trazendo uns saquinhos de café maravilhosos, sempre recém moídos, do café chique perto do trabalho. Como as duas precisavam de caffeine fix para começar o dia, café nunca faltava. Mas agora que a amiga estava dormindo mais na casa do boy do que em casa, pelo menos nos finais de semana, a chance é que o café bom estava todo indo pra lá. E a semana na editora tinha sido tão atípica que Lara nem tinha lembrado de roubar mais pacotinhos, ou passar no mercado. Pensou em fazer chá verde, que dizem que tem tanta cafeína quanto café, mas desanimou. Encheu mais um copo de água gelada e foi deitar na rede. O sol batia naquele canto preferido da sala e Lara ficou ali, fechada dentro do casulo de algodão grosso cor de baunilha, curtindo o silêncio e espantando uma vontade de fazer xixi, de levantar e checar as mensagens de celular, de lavar o rosto. O que quer que pensasse, a cabeça voltava pro café. Lembrou de quando fez entrevista com um especialista colombiano, um estudioso da cafeína, para uma reportagem sobre a nova cultura de café entre jovens. O cara afirmou que essa neurose por café é um mito. “Café não vicia,” afirmou do alto de sua especialização. “Mas gostamos tanto da forma como o café age em nosso estado de espírito que gostamos de pensar que sem ele a vida pára.” Lara era uma boa argumentadora, consumidora de café voraz há mais de dez anos, e afirmou que tinha dores de cabeça beirando o insuportável, que sem café se sentia mais irritada, lenta e preguiçosa. A experiência diária, vivida, real. Mas o especialista afirmava que não, era só impressão, mais ou menos como os remédios placebo. Seja como fosse, a tal da impressão era forte demais para enfrentar na manhã de domingo.
Lara se deu mais dois minutos de balançar na rede sabendo que ia ter que se vestir e sair atrás de pó de café. Não conhecia nenhum vizinho e nessas horas morar no centrão de São Paulo era muito chato, porque os mercados estavam fechados. Tentou pensar em onde teria um Pão de Açúcar mais próximo, tentou pensar em ir até o Takko, pensou em ligar pra reclamar com a amiga, como se isso pudesse resolver. Pensou se a senhorinha que vendia café coado durante a semana não teria se animado em fazer o mesmo de domingo. Começou a mapear mentalmente os lugares onde poderia tomar café na região tinha café dentro da biblioteca, mas certeza que não estaria aberto na manhã de domingo e, de qualquer forma, era invariavelmente ruim. E lembrou do café caro-moderno-premiado que tinha acabado de abrir no térreo do Copan.
Já que estava de pé, fora do casulo protetor da rede e da varanda, então ia fazer a paranóia do café valer a pena. Entrou no quarto, escolheu um vestido no armário (roupa de domingo, pensou, ela nunca usava vestido) molinho com estampa de margaridas vestiu as alpargatas vermelhas, prendeu o cabelo pra cima num coque e lavou o rosto. Passou até um pouco de batom leve e perfume. Pegou uma bolsa de mão, o caderninho de sempre, o RG com o cartão do banco dentro, um óculos escuros e o celular que piscava. Prometeu só ver as mensagens depois de estar sentada e alimentada, para manter o casulo virtual. Só enrolou na hora de pegar o livro certo. Escolher livro na estante era sua versão pessoal de fazer drama na frente do armário, " ai, mas não tem nada pra ler”. Pensou em levar uma edição pequena de “Porcos com Asas”, gostando do paralelo São Paulo 2021 com Paris 1968 e só percebeu a barriga roncar quando estava dentro do elevador lento de todos os dias, vendo cada um dos 18 andares passar lentamente pela janela gradeada. Imaginou o café recém passado, um pedaço de bolo daqueles caseiros sabor laranja, quentinho, uma mesa de canto, musica ambiente suave, não fazer nada além de tomar café, ler e escrever sem ninguém interromper pelas próximas sei lá dez horas. Olhou no visor do celular que piscava insistentemente com a chegada de mensagens no Instagram.
O café tinha mesmo acabado de abrir e por isso mesmo a fila era enorme. Pessoas encostavam por fora das grandes janelas de vidro. Um garçom estava parado na porta lidando com grupos de pessoas. Lara levou uns instantes pra entender o que estava acontecendo. Contou vinte e tantas pessoas aglomeradas na porta, esperando sua vez de comer, numa névoa de energia faminta. A janela pintada com giz anunciava coisas gostosas porém distantes do café da manhã afetivo que Lara tinha imaginado: cuscuz com salada de coentro e cebola, drink sem álcool com gengibre, toucinho do céu de sapucaia com puxuri. A oferta não fez o estômago de Lara roncar, mas ela se espremeu sozinha até a porta esperando um tom de confidente com o garçom que sabia existir só na sua própria cabeça, já que desde a abertura do lugar ela era apenas uma sempre quase-cliente, do tipo que para na porta, pensa e acaba indo em outro lugar. Para sua surpresa, o garçom a reconheceu, dando um quase aceno de cabeça em meio a sua função de responder clientes ansiosos e anotar números de telefone e direcionar pessoas para dentro. Lara perguntou em voz baixa pelo tempo de espera.
“Não sei dizer. Desculpa, não sei mesmo. São quantas pessoas?”
“Sou só eu.”
“Deve pintar lugar logo menos, mas é a primeira vez desde a abertura que fica cheio assim, a gente não estava esperando.”
“Sei. Tudo bem. Acho que me dou melhor outro dia.”
“Com certeza. Vê se na próxima entra e experimenta,” ele respondeu com um sorriso, olhando pela única vez diretamente pra ela.
“Entro sim. Obrigada. Posso só perguntar o que aconteceu?”
“É meio bobo, mas parece que uma influencer famosa veio aqui essa semana e colou no Instagram e a coisa saiu de controle. Mas eu não vi o post. Só me contaram. A Gavu Manassi.”
“Hahahaha! Não brinca? Ela veio aqui?”
Uma família com duas pré-adolescentes olharam pra eles imediatamente, as meninas com olhos ansiosos.
“Pior que isso, ela mudou pro Copan. Parece que ela adorou o café e fez um video no Instagram mostrando o lugar. Isso foi ontem. Hoje tinha gente na porta antes de abrir.”
“Me avisa se abrir vaga pra ajudante, parece que vocês vão precisar.”
O bom humor de Lara durou só até lembrar que continuava com fome. A senhorinha do café e bolo que ficava na Brasilia perto da entrada do metrô Republica não trabalhava de domingo.
Eu tô zuando no texto mas o café moderno no térreo do Copan existe, chama Cuia e é ótimo, vai lá:
Sobre a Manu Gavassi morar no Copan: ouvi essa história mas não atesto a veracidade. Acho que ela mora no Centro em uma série pra streaming que rolou ano passado, não vou dar o nome pois muito ruim.
Tenho achado muito peculiar o que está acontecendo com esse pedaço específico da cidade (que já apareceu em outro texto ficcional meu que gosto muito). Como dizem: mixed feelings. Eu quero ver os lugares cheios, pessoas gastando dinheiro, pessoas ganhando dinheiro. Mas eu não quero gastar R$30 num docinho ou R$95 numa garrafa de vinho mediano. Sei lá. Pelo menos o Floresta continua igualzinho: café (ruim, eles botam canela p disfarçar) pra tomar rapidinho no balcão.
Ele era gaúcho de nascença, com uma energia meio cidadão do mundo, mas tão paulistano no coração. O Caio F. Não era? Nunca me canso de ler, de consultar. E agora também posso ouvir: tem muita voz do Caio Fernando Abreu nesse episódio especial sobre ele no 451 MHz, o podcast da revista dos livros. Com convidados especiais como a Paula Dip, amiga e biógrafa, e Ítalo Moriconi, curador literário e ensaista, o episódio é uma delícia por trazer a obra do Caio sem freios, com sexo, astrologia, melancolia e rebeldia.
Ando lendo pouco (já reclamei disso por aqui?) mas os livros não páram de chegar, Oxalá é pai! Essa semana indiquei no Instagram os clubes de livros da Dois Pontos — é publi e tenho que avisar mas também é de coração porque a Dois Pontos é feita por gente que lê, que ama e lê os livros que recomenda. Foda-se a Amazon. Compre na Dois Pontos.
Pra quem leu até aqui: gente, ninguém comentou que eu REPETI UMA CRÔNICA! Quem me escrever de volta dizendo qual e em quais edições ganha um docinho.
Cheguei agora no rolê, não sei qual a crônica, porém, vou comentar pra ver se chega notificação de quando tiver notícias do amigo da Lara (adorei a crônica)
Oi, Sobre o Copan, recentemente ouvi essa pequena série em áudio: COPAN, edifício em movimento. Enquanto lia seu texto imediatamente fiz o link. https://open.spotify.com/show/4Cf45vCid7BKOQgaM7aQA5?si=o3qqcOYDSXa1QlKKD4DReA&utm_source=copy-link