Tá Todo Mundo Tentando
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Tá todo mundo tentando: achar sentido
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Tá todo mundo tentando: achar sentido

Acordei, já dá pra ver Sandman?
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Para ouvir lendo: Um Aphex Twin de leve pra sair da neurose (Youtube)

Já passava das dez da manhã quando Lara chegou em casa. Não que o relógio fizesse qualquer diferença — nada fazia mais diferença agora do que o sofá azul na sala com cobertor e almofadas, o ar fresco entrando pela janela, o apartamento aberto e iluminado, exatamente como o havia deixado há três dias, vinte anos.

O idílio momentâneo foi interrompido pelo barulho dos ônibus passando na avenida lá embaixo, alerta de dia útil — útil pra quem? O ruído entre os ouvidos, mistura de confusão mental com inflamação auditiva após longa exposição a caixas de som sem controle de grave, tornava óbvio que ainda ia demorar pra dormir. Talvez não dormisse nunca mais.

Lara sentou no chão, pensando que queria ser um pedaço do apartamento, mimetizar com os tacos inundados de sol para ver se o calor mudava alguma coisa dentro do corpo, fazendo um esforço hercúleo para conseguir desamarrar e tirar os Converses brancos imundos, as meias coladas nos pés. Quis que o sol e o silêncio fossem suficientes para preencher o vazio dos últimos três dias, vinte anos, mas mais que isso, que pudessem a transformar em outra pessoa, uma pessoa boa, uma pessoa que acorda às seis da manhã, toma água e veste roupa branca para fazer yoga na sala, uma pessoa tão boa na yoga que nem precisa de professora, uma pessoa que mói o próprio café e o tem daquelas chaleiras bico de pato de cafeteria da Vila Buarque, uma pessoa que anda com o namorado bonito na Paulista de noite, depois do cinema, falando sobre o filme, que pára para dar um troco pra pessoa de rua que pediu porque sempre tem dinheiro trocado no bolso pra isso, que antes de ir pra casa pára na casa de sucos e não no bar, uma pessoa funcional que faz o próprio imposto de renda e leva o gato no veterinário ao invés de esperar que a natureza dos homens e dos bichos siga seu curso e que as coisas acabam sendo como sempre são: uma desgraça.

Já tinha vivido o nightlife paulistano o suficiente para saber que a volta pra casa envolve encontrar um jeito de encarar essa desgraça, pesando o melhor (a pista, a música, os abraços, os risos, os beijos) e o pior (subir a serra numa reta só na mesa de uma cozinha qualquer às duas da tarde, inventando mentiras pra não ficar sem assunto). Tudo em loops, tudo concentrado num tempo amplo ou curto demais a depender do interlocutor. Agora, aqui, nesse instante, sentada no chão e encostando aos poucos no macio do sofá, a odisséia de tudo parece longa demais. Cansada, os músculos ainda tensos pelo esforço inútil de não desistir, abusados pela falta de sono, pelo excesso de energia descanalizada.

Ficar sem dormir e comer direito parecia menos pior do que ficar sem tomar banho, apesar que ela lembrava de ter entrado em um chuveiro em algum momento dos últimos três dias, vinte anos, mas a cabeça cansada e a mistura de coisas na corrente sanguínea não permitia, agora, entender se era verdade ou imaginação. Muito do que acontece nos finais de semana é só imaginação e é por isso que uma parte do fim de semana nunca morre: imaginar que encontrou amor, imaginar que encontrou uma amizade, imaginar que é boa a cocaína comprada no cartão de débito na porta de um boteco da República, imaginar que o DJ é bom, imaginar que sim estamos todos nos divertindo, estamos mesmo nos divertindo muito, estamos nos divertindo demais — até que não.

Lara não quis ir até o quarto, sem coragem de levar o fim de semana pra cama, e tirou a roupa na sala mesmo, jogando as meias no lixo do banheiro e entrando debaixo do chuveiro elétrico daquele tipo menos água = mais quente, o corpo arrepiado pelo ar frio de junho em São Paulo, a água lavando a gordura dos cabelos e a poeira do corpo, molhando por dentro da boa seca, espalhando o sabão no chão. Seria possível morrer agora, escorregando na espuma do chão e batendo a cabeça na parede, diz que corte na cabeça sangra muito, ela lembrava de quando era criancinha e cortou o supercílio numa quina de mesa, o avô colocando o bandêide em cima do machucado, a irmã menor olhando assustada na porta do banheiro — tudo fazia vinte anos ou três dias e não fazia mais diferença.

Enrolou o peito numa toalha e afastou as roupas de cima da cama para poder deitar: meias-calça, uma frente única brilhante, o casaco peludinho cor de rosa, aquela legging que foi bacana há uns quatro anos. Ela pensou em usar tudo isso mesmo? Esvaziou a bolsa em cima da cama e deu pela falta dos óculos escuros bonitos, Persol, presente de um estrupício que tinha ficado pra trás também, mas isso também não fazia mais diferença.

Olhou o maço de Marlboro branco e pensou se ainda tinha forças para fumar um último cigarro na janela, deixando o cabelo secar um pouco no vento e na fuligem dos ônibus que passavam lá embaixo, e concordou consigo mesma em deixar a cabeça desligar o corpo, uma hora ia acontecer, ou seria o contrário? e decidiu que não, que agora era uma nova fase, sem cigarro, amanhã ou daqui três dias, vinte anos, quando acordasse de novo seria como uma nova pessoa, a pessoa que faz exercícios de manhã e que mói café e que escova os dentes antes de começar o dia e que tem um namorado bonito que dá pra apresentar para a família, a pessoa que tem um trabalho e carreira e que gosta de verdade de ir na academia, a pessoa que vê disciplina como liberdade e não como uma palavra pouco divertida que só significa impedir finais de semana de drogas e decadência como esse, como tantos, há três dias, há vinte anos.

Mas isso tudo era depois. Agora só o cheiro de sabonete e o teto ficando cada vez mais longe, os cabelos molhando o travesseiro. E se ficasse gripada e tivesse pneumonia e ninguém lembrasse de vir ver como ela estava, é assim que pessoas que moram sozinhas morrem? De todas as dezenas de pessoas encontradas no fim de semana não conseguia pensar em nem uma que ligasse pra saber se tinha chegado bem, se tinha acordado bem, se tinha ficado doente, se precisava de algo. Três dias, vinte anos, nenhuma conexão perene. Viu o teto ficando longe. Enrolou o corpo quente debaixo das cobertas bagunçadas e antes de dormir ainda pensou que deve haver algum sentido, ou o que será depois?

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👁️ estou vendo: Sandman

É provável que quando você estiver lendo esse email eu esteja vendo parte dos dez episódios de "Sandman" na Netflix – nesse exato momento é tarde de quinta e "Sandman" estreia amanhã cedo. Mas meu plano é não ver tudo de uma vez para saborear ao longo do fim de semana. Sandman é muito importante pra mim, é a obra de ficção mais impactante *da minha vida*. Não ri. É sério. 

Eu lembro com clareza de quando coloquei as mãos nela pela primeira vez: era uma caixinha de papelão com os oito números de "Prelúdios e Noturnos", o primeiro dos dez livros e o começo da história: o Rei dos Sonhos é aprisionado, escapa e precisa recuperar seus objetos de poder para restaurar o poder de seu reino. 

@elcerdo

Os gibis, publicados pela Globo no começo dos anos 1990, eram do irmão do meu padrasto, fã de quadrinhos, emprestado para a minha mãe, também fã de quadrinhos. HQ fazia parte do repertório cultural da nossa casa, de revista Mad à Chiclete com Banana, passando por Asterix e Tintim. Mas aquilo era diferente.

Eu tinha treze anos e achei ali tudo que eu amava: horror, ocultismo, referências musicais obscuras, gatos, cigarros e, claro, o look do Morpheus, inspirado no Bauhaus (a banda, não a escola de arte  alemã). Era como se alguém tivesse colocado em texto e desenho tudo que eu desejava, estética e intelectualmente (tem diferença?) numa narrativa que o tempo todo tentava me dizer: existe mais do que você está enxergando, muito mais, eu vou te mostrar.

Quando fechei a última página do oitavo volume ("Eu caminho ao seu lado e as trevas abandonam a minha alma, eu caminho com ela e ouço o som de poderosas asas"), eu estava entregue. Joguei fora a caixa, escondi as revistas num canto do meu armário e roubei a coleção na maior cara de pau do mundo —nunca contei isso pra ninguém, até agora. Depois, me dediquei a comprar com a mesada as edições mensais em bancas de revistas. Tenho todas as que foram publicadas pela Globo em português. As outras partes da saga completa comprei mais tarde, pós-Amazon, em inglês. Quando digo pra vocês que eu *sei de cabeça* as falas, não estou exagerando: nessas três décadas eu reli "Sandman" pelo menos uma vez por ano. Faça as contas.

@elcerdo

"Sandman" despertou meu interesse por mitologia grega, me inspirou a ler Shakespeare ("Sonho de Uma Noite de Verão") e a ouvir as vozes dos gatos. Me mostrou personagens travestis e homossexuais com vozes e vivências próprias do mundo, as relações entre desejo e desespero, prazer e delírio, destino e destruição, a inevitabilidade e beleza da morte, a complexidade de relações familiares e amorosas, leituras não-caretas de personagens bíblicos e a imensa diversidade das mitologias do mundo. 

As leituras, claro, mudaram conforme eu mesma cresci, amadureci e mudei. Mas nunca se tornaram menos interessantes. É uma relação profundamente emocional, que não desenvolvi com nenhuma outra obra. Tenho, portanto, enormes expectativas para a adaptação da Netflix, entendendo que são mídias diferentes, blablablá. E que se eu não gostar também tudo bem: sempre terei as histórias das publicações originais me fazendo companhia. 

Morpheus  em "Um Jogo de Você", quinto livro preferido da saga, e meu preferido — drag queens! bruxas! referências gregas obscuras!
Morpheus na adaptação da Netflix. A série estreia hoje, tem dez episódios e cobre os livros "Prelúdios e Noturnos", "A Casa de Bonecas" e parte de "Terra dos Sonhos"

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🏠 Prédios de São Paulo, vl 2

Esse post é um oferecimento da Refúgios Urbanos, uma imobiliária feito por (e para!) amantes da arquitetura #publi

A Editora Brava, com apoio da Refúgios Urbanos, está relançando o segundo volume da trilogia "Prédios de São Paulo'' — atualmente esgotado. É possível apoiar o lançamento como pessoa física, com qualquer valor, e também participar com apoios maiores, ganhando selo e menção na publicação:

apoie o Prédios de SP 2

A série mapeia alguns edifícios importantes da história arquitetônica de São Paulo, com prédios conhecidíssimos e outros nem tanto. Alguns destaques desse segundo volume, que sairá via crowdfunding:

Ed. Planalto

Juntos, os edifícios Viadutos e Planalto formam uma das visões mais bonitas do Centro de São Paulo. Projetado por Artacho Jurado, o Planalto é o segundo da dupla, e tem um espetacular salão de festas no terraço, que serve quase 300 apartamentos. A história completa está no site da Refúgios.

Prédio Santo Antônio

Um sobrevivente dos anos 1920 em Pinheiros, esse lindo prédio residencial foi totalmente restaurado em 2014, valorizando sua história e os detalhes decorativos da fachada. Veja detalhes no site da Refúgios Urbanos.

Saint Honoré

Único prédio de João Artacho Jurado na Av Paulista, o Saint Honoré fica de frente para o prédio da Gazeta e não tem as pastilhas coloridas e ondas suaves que viriam a caracterizar o arquiteto, sendo bastante neutro e até mesmo sóbrio. Os apartamentos, que dão para a avenida e para a Al Santos, possuem varandas enormes e muita luz natural. É possível ver as áreas comuns, como jardins e piscina, no site da Refúgios.

SESC Pompeia

Uma das maiores contribuições da arquiteta ítalo-paulistana Lina Bo Bardi, o SESC Fábrica Pompéia surge num contexto pós-ditadura com uma proposta de arquitetura para ser usada pela cidade, um lugar onde convive o trabalho, shows, exposições de arte, teatro, livros, esporte e comida, além de servir de espaço para o ócio — sim, é uma delícia fazer nada no SESC Pompéia. Veja casas e apartamentos perto do SESC Pompéia no site da Refúgios.

Conheça esse e outros prédios incríveis de São Paulo no site da Refúgios Urbanos.

💡 Vem aí: ABC da Newsletter:  criação e monetização de newsletters autorais

  • aulas nos dias 22 e 24/08 das 19h às 21h

  • foco em conteúdo autoral

  • estratégias e dicas de monetização

  • aprenda a definir seu tema e criar uma newsletter que é a sua cara

  • saiba como criar um calendário de publicação (e cumpri-lo)

  • estudos de cases

Acabei de abrir mais uma turma do ABC da Newsletter, agora divida em duas aulas e com foco em criação e monetização de newsletters autorais. A ideia é ter menos foco em plataforma (Substack ou qq outra) e mais em desenvolvimento do conteúdo e caminhos para criar uma newsletter monetizável. Apesar de ser mais longa que a edição passada (são aulas com uma hora de exposição + uma hora de perguntas/respostas), mantive o mesmo valor: R$330. Como sempre, tenho uma quantidade limitada de ingressos para estudantes e bolsas para quem está sem trampo e pode se beneficiar desse aprendizado - se é seu caso, fale comigo por email.

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A seleção de sete livros inclui a pré-venda de "Vivo Muito Vivo", seleção de ficções de autores diversos inspirados por canções de Caetano, e "Lançar Mundos no Mundo", de Guilherme Wisnik — esse, que terá leitura especial na Biblioteca Mário de Andrade amanhã.

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Uma newsletter sobre o mal-estar da vida na São Paulo dos anos 2020 | por Gaía Passarelli -> http://gaiapassarelli.substack.com